Nunca faltou desculpa ao Brasil para as derrotas nas copas, desde 1930. Não tivemos os paulistas no Uruguai, os juízes de Mussolini na Itália, sorte na França, eficiência no Brasil e futebol na Suíça. Em 1958, Garrincha sobrou.
Garrincha pendurou os rouxinóis caçados na mata de Magé, Rio de Janeiro, no corpo desnudo e tomou o rumo de casa. A estilingada rendeu os ossinhos de sortimento do arroz de Dona Carolina. Preocupado com o atraso do almoço, dispensou a bolinha branca, de meia fina, perdida no caminho, furada que o algodão apontava para fora, e suja de lama, pois caíra no barro. Não quis animá-la. Arriscou a pele em terrenos baldios, sempre, mas ninguém, nem mesmo o menos talentoso dos jogadores do lugar, gastaria a sola com bola de meia fina e branca, ainda mais furada. Ainda mais com o almoço atrasado.
Como aquela meia, a casa e Pau Grande escalaram Garrincha para tentar a sorte no futebol do Rio de Janeiro, primeiro no Vasco, depois no Botafogo:
* O que você quer, garoto?
* Jogar futebol.
* Cadê as chuteiras?
* Não tenho.
* Vai caçar emprego, moleque!
Manoel dos Santos fez o caminho de volta. Não iria caçar emprego no Rio de Janeiro, mas garrinchas em Pau Grande, jogar bola em Pau Grande, comer as meninas de Pau Grande.
Sob insistência, submeteu-se novamente à tortura, agora no Botafogo, sem que o avisassem de quê, à sua frente, o badalado Nilton dos Santos posicionava-se ereto, firme, um gato pronto a lhe roubar a bola assim que arriscasse seu gingar atrevido.
Resolveu se enfiar pelo meio e não pela ponta, a variar o costume. Dos Santos saiu para a ponta e Garrincha passou. Logo adiante, o atacante saiu pela ponta e o lateral tentou o meio. Garrincha avançou, cruzou, por pouco não dá em gol.
Ensaiando dos dois lados, dos Santos tomou embaixo das pernas. O treino acabou com o suado lateral cumprimentando o zombeteiro de pernas tortas:
- Onde aprendeu tudo isso, garoto?
- Em Pau Grande.
- Continue treinando, Garrincha. E venha logo para o meu lado, antes que eu perca lugar no time.
O que mudou em 1958? Garrincha. Jogasse ele todas as copas, seriam favas contadas o hexa na Suécia, em1958. Em 1934, então, a Copa estava de graça, à nossa feição. Faltou Garrincha.
Um toque genial pela direita e a gente escapava dos juízes corruptos, subornados por Mussolini. Um pisão no pé alertava o juiz para a falta não marcada. Um chute no tornozelo lembrava o impedimento escandaloso. Para gol mal anulado, o jeito era partir pra cima, de pau grande:
- Escute aqui, velhinho. Se você está com medo de morrer depois do jogo, esquece. Tua hora chegou e é agora.
Com medo da máquina comunista, campeã olímpica de 1956, precisando ganhar o jogo em 1958, alertado pelos mais experientes, Vicente Feola convidou Garrincha para uma conversa particular:
- O time da União Soviética é forte, Mané. Estou pensando em te botar, junto com o Pelezinho. Você se dá bem com ele?
- Não.
- E com Didi?
- Também não.
- E com Vavá?
- Seu Feola, eu não tenho que me dar bem com ninguém, só com a bola. Mande os russos fazerem a fileira, o resto é comigo.
Três joguinhos depois da contenda soviética, Brasil campeão do mundo, Mané procurou Feola:
- Dá para me liberar das festas? Quero ir embora. Não tem nem segundo turno este torneio aqui. O Fogão tem um jogo duro contra o Fluminense, lá no Rio. Não posso perder aquela parada.
Um torneiozinho mixuruca na Suécia enfastiou e entediou o demônio de pernas tortas.
O último gomo da tangerina enchia a boca de Mané de caldo e bagaço, enquanto observava o treino do Botafogo, sentado à beira do campo. Emprestara suas chuteiras novas a um João qualquer para que as recebesse amaciadas.
O tapa que Aymoré Moreira desferiu em suas costas engasgou o folgado Garrincha:
- O que está acontecendo, Mané?
- Entalei, seu Aymoré. Você ficou doido?
- Tem um mexerico aí na rua que não é bom para você.
- E qual é?
- Garrincha dispensa a convocação e não vai participar do bicampeonato, no Chile.
- Não é mexerico, não. Estou fora. É muita viagem para pouco jogo. Além disso, não precisa de mim. Você já tem Pelé. O Brasil não precisa de nós dois, não.
- E se o Pelé se machucar?
- Aí, eu viajo.
- A regra de inscrição da Copa não aceita bagunça. Ou acerta ou deserta.
- Deserto.
- Não aceito. Vou inscrevê-lo. Depois, veremos.
A contusão de Pelé, logo no primeiro jogo, serviu de deixa para Aymoré:
- Está vendo aí, Garrincha. Trate de jogar agora por dois, se não a gente volta rapidinho para o Brasil e de pires na mão.
Ao invés de formar fila e facilitar a vida de Garrincha, tal qual fizeram os russos na Copa passada, dois mexicanos se posicionaram lado a lado e um estacionou mais recuado, trazendo a geometria para o campo de jogo, última novidade na marcação de nosso famoso jogador. O triângulo afrontou Garrincha e debochou da sinuca em que ele se meteu.
Se a perfeição no futebol sempre privilegiou o ataque, aquela defesa era o seu contraponto.
O espírito de uma garrincha, o passarinho, que caça moscas e mosquitos no ar em arribadas e mergulhos acelerados, freios repentinos e bicadas certeiras, chamou Mané para si, endiabrou seu corpo, projetou-o contra a barreira mexicana. Se o gingado não fosse de um torto, o serviço ficaria pela metade e, a bola, com os defensores. Completamente apaixonada por seus pés, ela não se apartou de Garrincha um só milímetro e foi com ele até o outro lado, posicionada para o chute a gol ou o cruzamento, o atacante que fizesse o que bem entendesse. Não cruzando, não chutando, com o bico externo da chuteira direita, Garrincha aplicou um totozinho lateral na bola e a penteou para trás.
Como um passarinho novo ao ninho retorna, ele ofertou nova chance ao trio defensivo, voltando à posição original.
As baratas tontas, os cucarachas, levantaram-se e refizeram o posicionamento. Com os dedos abertos, Garrincha os convidou para a repetição do baile. Foi uma festança a Copa toda, a Espanha dançando juntinho com o Chile, a Inglaterra dançando separado com a Tchecoslováquia.
O ritmo? O de Mané.
Manoel Francisco dos Santos, ou simplesmente Garrincha, nasceu em Magé, Rio de Janeiro, em 1933, e morreu em 1983, em conseqüência do alcoolismo. É considerado o segundo melhor jogador da história do futebol brasileiro, depois de Pelé. O ‘anjo das pernas tortas’ foi campeão mundial em 1958 e 1962 pela Seleção Brasileira. Em 1962 foi o melhor jogador da copa. Jogou no Botafogo, Flamengo e Corinthians, tendo sido campeão carioca e do torneio Rio-São Paulo pelo Botafogo. Marcou mais de 300 gols na carreira, a maioria pelo Botafogo.