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Encontraram Foucault na camada do pré-sal!

O Estado hiperativo em regras que o tornam autolimitado é algo assim: abrimos o pré-sal para empresas estrangeiras, abrimos mão de R$ 730 bilhões na participação governamental no pré-sal ao longo de 25 anos, abrimos mão de tributos excepcionais, abrimos...

Foucault

As novas regras de exploração do pré-sal fazem parte de um projeto político, de uma arte de governo, que não pode ser lida apenas como postulação de um Estado mínimo. Nossa hipótese é a seguinte: trata-se de um Estado hiperativo na construção e garantia de regras que conferem ampla liberdade de ação às forças privadas. Ativismo estatal com redução do Estado e estímulo aos capitais privados nos mais variados domínios. Eis a fórmula.

Talvez fosse mais preciso dizer: ativismo estatal para redução do Estado, retirando o poder público de domínios em que ele intervém diretamente sobre as condições de vida, assegura proteções, garante mínimos sociais, redistribui recursos, aufere receitas públicas para financiar suas políticas. Portanto, a outra face desse regime é o pressuposto inscrito nas práticas, segundo o qual cada um deve cuidar de si, ainda que em circunstâncias de crise. Na verdade, sobretudo na crise, pois a resposta a ela é produzir as condições para a livre circulação econômica. O Estado age sobre os interesses dos indivíduos, ou, de forma mais precisa, interage com os interesses individuais, considera-os em suas análises e cálculos, constitui seus objetos levando em conta a racionalidade individual, como agem indivíduos com base em seus desejos. Enfim, jogo complexo entre o individual e o coletivo (população), do qual resulta, a cada tempo, a definição do que cabe ao Estado fazer.

Para tanto, o individual é o instrumento (a opinião, o agir, o comportamento, sobre os quais incide o governo); mas a prática de governo já não pode postular a preservação do poder do príncipe, conforme a velha razão de Estado. Seus objetivos passam pelo bem-estar desse coletivo chamado população, que, segundo Foucault, irrompe nas práticas governamentais a partir do século XVIII. Correlativamente, desenvolve-se toda uma tecnologia de poder cujos efeitos sobre as condutas dos homens requerem novos objetos, estendendo-se das áreas econômicas às sociais: médias, padrões normais, tábuas de mortalidade, distribuições de probabilidade, riscos distribuídos por diferentes segmentos, todos eles permitindo tomar como objeto da prática de governo a população, regulá-la de modo a lidar com o “perigoso”, com aquilo que constitui risco mensurável, constituir dispositivos de segurança para aproximar distribuições. Enfim, uma sociedade da regulação.

Sob essa chave, o bem-estar, a volta aos trilhos, a saída da crise, tudo se expressa em índices que se referem à economia (a dívida, o déficit, o grau de investimento, a balança comercial). Ao Estado cabe incidir sobre os agires e sobre as coisas, induzi-los a entrar no jogo da produção e circulação, desimpedido de regras que o limitem. O ponto é agir sobre a racionalidade econômica, deixar as pessoas e as coisas circularem para transformar interesse individual em bem coletivo. Gerar confiança e receber de volta alguma produção de riqueza. Aí reside o grau pertinente da intervenção pública. Ela não tem como alvo e sujeito a multiplicidade de indivíduos, a construção de redes de proteção que minimizem os efeitos da crise, a socialização de riscos, as condições para que as classes mais afetadas pela recessão possam contar com provisões públicas. O princípio é a autolimitação do governo que, contudo, deve saber interagir com o individual, visando aos anseios da população, à sua segurança, racionalizada como alcance de índices que atestam distribuições de probabilidade aceitáveis em áreas diversas. Jogo complexo entre segurança e liberdade individual.

A crise subtrai possibilidades de existência, sob a forma de perda de renda e ocupação, ao mesmo tempo em que a resposta do Estado é conter a si mesmo, nomear o público a partir da autolimitação para que haja bem-estar. Esse espaço é ocupado, mediante ativismo estatal que produz regras pró-mercado, pelo capital privado. Na perspectiva de Foucault, o problema não é de teoria econômica, não é de autoridade de uma ciência econômica liberal, mas de uma tecnologia de poder que inscreve no corpo da sociedade um regime de verdade em que o domínio público se constrói pela autolimitação estatal, de acordo com o que Foucault designou como governamentalidade liberal. Nela, articula-se um conjunto de práticas num discurso que permite fundar um regime de verdade, integrá-lo à ação governamental, mediante uma racionalidade que demarca as coisas que o governo deve fazer e aquilo que não é objeto de sua intervenção.

Qual a relação entre regime de exploração do pré-sal e governamentalidade liberal?

Pré-sal e regime de partilha

O volume recuperável de petróleo, o reduzido custo de extração e o baixo risco de exploração tornam o regime de partilha mais adequado enquanto regra de exploração do pré-sal. Na partilha, o Estado é o proprietário do óleo, ditando seu ritmo de produção, o que é essencial diante da possibilidade do país se tornar exportador e formador de preços no mercado externo. No regime de concessão, o óleo é do contratado, que deve pagar compensações financeiras ao Estado. Portanto, a petroleira dita o ritmo de produção. Não por acaso, quase nenhum país exportador utiliza o regime de concessão, mantendo-se o controle estatal da atividade.

A volta ao regime de concessão, defendida por autoridades como o Presidente da Câmara, seria nociva ao país, que perderia o controle sobre a produção do petróleo, com impactos sobre variáveis econômicas. No entanto, a questão não se esgota na adoção de um modelo ou outro. Há inúmeras variações no interior de cada modelo, assim como combinações possíveis entre eles. Tampouco se pode associar a partilha à maior participação governamental na renda oriunda da exploração de petróleo, assim como a concessão não é um regime no qual as rendas obtidas pelo Estado são necessariamente menores em relação à partilha.

Tudo dependerá de como as regras do jogo serão fixadas em leis, decretos, resoluções e editais: alíquota de royalties, bônus de assinatura, participação especial e, especialmente, no caso da partilha, participação da União no óleo lucro (excedente em óleo). Nesse último caso, o regime de partilha determina que as empresas devem competir em função do percentual de óleo excedente que destinam à União. O contratado adquire o direito à apropriação do custo em óleo. A diferença entre o volume total da produção e as parcelas relativas ao custo em óleo (além dos royalties devidos) é o óleo lucro, a ser repartido entre a União e a contratada. A receita advinda da comercialização de petróleo integrará o Fundo Social, cujos recursos financiarão políticas de educação e saúde, entre outras.

Portanto, a apropriação do óleo excedente é um componente central para entender como são geradas as receitas públicas no regime de partilha. Seus percentuais determinam a divisão entre União e contratada. As empresas disputarão os blocos pela oferta de óleo lucro à União (pagando bônus de assinatura fixo) e os editais trarão índices mínimos. Aqui reside um componente central da referida economia de poder liberal: o Estado hiperativo em regras que o tornam autolimitado.

Primeiro, a Petrobras deixou de ser operadora única do pré-sal, abrindo-o às petroleiras internacionais (Chevron, Shell, Statoil ...). Os editais das licitações ocorridas em 2017 (segunda e terceira rodadas) estabeleceram percentuais mínimos, em média, de 16%. Em experiências internacionais, o índice gira em torno de 70%. Aludindo novamente a Foucault, o mercado é um regime de veridição no regime de governo liberal. Os preços constituem um parâmetro para avaliar a prática de governo, para classificá-la em termos de verdadeiro e falso. Nesse caso, tome-se como cômico ou trágico, os ágios obtidos foram, em média, de 56% nas referidas rodadas. O mercado corrigiu o governo, aparentando dizer: “sua prática é racionalizada como estímulo ao mercado. Nunca governe demais. Deixe os interesses privados fluírem que a síntese será o interesse público. Ok, estamos de acordo. Mas não exagere. O preço do pré-sal não pode ser tão módico”.

Talvez pudesse se falar em efeito de aprendizagem. Afinal, eram as primeiras rodadas sem a Petrobras como operadora exclusiva. No entanto, as regras já divulgadas da quarta rodada preveem percentuais mínimos que variam entre 7% e 22%. São valores ínfimos. Se não houver ágio, as empresas reterão entre 78% e 93% do óleo lucro! É um modelo de partilha sem Estado! O princípio, claramente, é: limitemos o papel do Estado para induzir a exploração do pré-sal. A autolimitação não se refere apenas à redução do papel da Petrobras. São os percentuais de óleo excedente que minguarão e, com eles, as próprias receitas do Fundo Social. Expressão de um regime de verdade que, integrado às práticas governamentais, constrói os princípios de sua própria restrição, esterilizando os recursos públicos de modo a criar potencialidades no espaço privado de competição.

Os prejuízos são evidentes. Na ausência de ágio, haveria queda de mais de R$ 730 bilhões na participação governamental no pré-sal ao longo de 25 anos1. Mas não é só. Independente das estimativas, as receitas públicas, obtidas mediante a comercialização do óleo excedente, receitas tributárias, bônus de assinatura e royalties, terão impacto ZERO no financiamento das despesas sociais. É que os gastos financiados com as receitas oriundas do pré-sal também são contabilizados para efeito do teto de despesas primárias (EC 95/2016). Ainda que as receitas cresçam em termos reais, abrindo margem fiscal, as despesas estarão limitadas à inflação do período anterior. Na lei orçamentária de 2018, recentemente aprovada, a despesa programada já está no teto.

Por todas essas razões, partimos da ideia de que não se trata apenas de discutir o modelo de partilha e o de concessão, ainda que não haja dúvidas sobre a adequação do primeiro para efeito de exploração do pré-sal. Mas é preciso examinar esse modelo de partilha bastante peculiar, que se integra aos dispositivos de poder-saber liberal. Nele convivem: a) baixos percentuais mínimos de óleo excedente para a União; b) impacto ZERO das receitas oriundas do pré-sal para o financiamento de políticas públicas como as de educação e saúde, tendo em vista o limite global de despesas primárias, com regra de crescimento real nulo por vinte anos.

Não bastasse o exposto, ainda há duas questões que reforçam a economia de poder liberal. De um lado, a redução dos índices de conteúdo local, em média, de 50% para exploração do pré-sal, questão especialmente problemática diante de um mercado de trabalho com 12 milhões de desocupados. De outro, a controversa MP 795 (já convertida em Lei), que permite, para fins de determinação do lucro real e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, dedução integral das importâncias aplicadas nas atividades de exploração e produção de petróleo. Combinada à lei da partilha (que já permite que o contratado se aproprie do custo em óleo), há o risco de duplo abatimento dos valores aplicados pelas petroleiras, reduzindo-se as receitas tributárias. Há quem fale em R$ 1 trilhão de perdas tributárias, conforme estudo técnico da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados.

Em todos os casos, vale formular a hipótese de que estamos diante do mesmo princípio: nunca governar demais. Fundar o espaço do público como limitação do governo e estimular, em contrapartida, os interesses privados, incidindo sobre sua racionalidade para gerar efeitos. Como uma tautologia, o governo se integra aos pressupostos econômicos e os agentes respondem produzindo as consequências. O regime de veridição do mercado chancela a prática (sob a forma, por exemplo, de ampliação da concorrência, do interesse pelas áreas licitadas, do volume esperado de investimentos). É nesse nível que se produzem os efeitos. O eventual ágio do leilão não é algo que organiza o jogo. Eventualmente, ele ocorrerá como subproduto de um modelo de estímulo ao mercado. Assim, os custos em termos de retração das possibilidades estatais (induzir política industrial, adensar cadeias produtivas, auferir receitas públicas, financiar despesas sociais com as rendas do pré-sal e assim por diante) não são uma variável intrínseca aos objetivos de governo, pois se tornam obstáculo ao jogo entre o individual e o coletivo, nos termos da governamentalidade liberal.

Nesse contexto, já não se trata apenas de autolimitar o governo, mas a própria população, uma vez interditados os dispositivos que constroem a transferência dos benefícios da exploração do pré-sal à sociedade. Diante do exposto, pode-se identificar uma variante da tecnologia de poder liberal, marcada por um Estado máximo no ativismo jurídico-administrativo, mas cujas regras servem à conformação de um domínio econômico radicalmente entregue a si próprio, em que a ampliação do espaço de mercado é correlativa da compressão do público (sob a forma, por exemplo, de financiamento às políticas públicas, percentuais mínimos de óleo excedente baixos e fixação de índices ínfimos de conteúdo local).

Se Foucault tivesse mergulhado no pré-sal e em suas regras de exploração, teria literalmente aprofundado suas teses sobre as tecnologias de poder liberais. Veria práticas de governo (especialmente a autolimitação do público) articuladas a um regime de verdade, mas, paradoxalmente, descobriria também o poder dos agentes de Estado em (re)construir definições oficiais, especialmente as regras que fundam o jogo do privado e do público, ainda que para homologar o primeiro polo como critério absoluto da prática de governo.

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