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Os ‘Especialistas’ Do Estado Sabem O Que Estão Fazendo?

(Sabem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo.)

Apesar de ter sido possível resolver o problema do Barbosa, nosso personagem logo abaixo, para que ele não ficasse de joelhos perante a administração, a capacidade de o Estado atender com mais efetividade às demandas das pessoas permanecerá em xeque, principalmente, pela nossa tendência ao esbanjamento e à profusão de institutos e instituições. A proliferação de leis, decretos, portarias, categorias, processos, contratos e convênios distribuídos em vasto território dificultam, quando não impedem, as ações de desenvolvimento.

Barbosa foi atropelado nas proximidades do Morro do Salgueiro, Rio de Janeiro. O SAMU chegou rapidamente, estabilizou Barbosa e o levou, de imediato, à Unidade de Pronto Atendimento – UPA, da Praça Sáenz Peña. Uma fratura no joelho esquerdo o pegou de jeito. Ele é atendido, faz os procedimentos, passa por exames e testes e, finalmente, é liberado, poucas horas depois. Seu caso não é grave. Vai para casa ficar com sua família, satisfeita com o Estado e com os profissionais que o atenderam. Não fosse aquela UPA, Barbosa iria para o hospital e acabaria ocupando a vaga de Seu Joaquim, que estava com a saúde mais comprometida.

Vista a questão sob o ângulo da racionalidade, é simples compreender aquilo que a sociedade espera do Estado. Prestar um bom serviço, quando o cidadão estiver passando por necessidade e, depois, tchau e benção. Não há mistério e a hora é de cuidar de outro.

Simplificar os serviços do Estado para melhorar a vida do cidadão é uma tarefa complexa. Muitos na administração já desistiram. Outros disputam o troféu da melhor proposta, travando uma briga de bastidores e defendendo suas técnicas e conceitos. Alguém estará com a razão. Se o hospital chegou na hora que você precisou, você pegou o cara certo. Barbosa, por exemplo, deu sorte e a razão burocrática estava do lado dele.

Uma engrenagem silenciosa faz tudo dar certo ou errado. No certo, lembramos Gonzaguinha: “Você merece, você merece, tudo vai bem, tudo legal”. ”. No errado, entramos na mira de Chico Buarque: “O nosso amor é tão bom/O horário é que nunca combina/Eu sou funcionário/Ela é dançarina/Quando pego o ponto/Ela termina”.

Os gênios – ou os genes – do certo e do errado são incompatíveis.

Vamos começar pelo gênio errado, o ‘especialista’ nas questões fiscais – analista econômico de plantão, pronto a estabelecer hostilidade e dicotomia entre o gasto de custeio e o investimento. Quando ele fala, o gasto público parece um fantasma com a aparência de uma denúncia pronta. “Isso é custeio”, conclui a jornalista, depois da exposição do ‘especialista’. “Quando o custeio sobe, o investimento cai”. “Cortes devem atingir custeio, não investimento”. E por aí vai, a gente sendo obrigada a ler toda a matéria, condenando o custeio, valorizando o investimento.

O ‘especialista’ não para por aí. Lembra à jornalista todas as classificações oficiais da despesa pública, dando uma verdadeira lição nos ignorantes sobre orçamento, convênios e transferências em geral. Tudo tem um número infinito de categorias. Podemos chamar esse conhecimento ou esse ponto de vista de insulado ou autorreferenciado, pois é exclusivo do ‘especialista’. É o que podemos chamar de perspectiva interna. É a particularização de um conhecimento que, ao fim e ao cabo, leva a um sistema dominado por eles, os ‘especialistas’.

A demanda das pessoas por serviços públicos em qualidade e quantidade suficientes é a perspectiva externa. Sair de seu mundo burocrático para atender Seu Barbosa é um desafio dos diabos para o ‘especialista’, um esforço de transfiguração da perspectiva interna para a externa. Como o horário do casal, que nunca combina.

Certa feita, em um seminário sobre obras, um sábio de gênio bom proferiu a seguinte crítica:

- Não se pode fazer obra pública por ela mesma. Deve-se pensar na utilização posterior, pois ela tem que ser entendida como um serviço público.

Aquela fala me deixou perplexo. Nada mais correto do que pensar na construção de um hospital como uma infraestrutura que atenderá a serviços de urgência e emergência do SUS. Mas se um hospital é um serviço público, por que todas as categorias de despesa pública a tomam como mera obra? Chego a lembrar do comentário do velho Marx: “eles (os especialistas) não o sabem, mas o fazem”. Mas o problema é que sabem, e sabem muito bem. Juntam-se aos bons gênios para defenderem resultados das políticas públicas, mas as categorias com que trabalham são processuais e controladoras, com ênfase no detalhamento burocrático. “Disso eles sabem muito bem, mas fazem assim mesmo”, diria o bom gênio, parafraseando Zizek.

As classificações oficiais da despesa pública são dessa natureza. Sabem muito bem que a obra não vale por si própria, mas agem como se valesse. A questão não reside nos instrumentos de organização do SUS, que induzem ao funcionamento de suas infraestruturas como parte de redes de atenção à saúde. O orçamento financia a obra do hospital, uma despesa de capital, e pronto, dane-se o resto. O recurso financeiro que paga sua execução é carimbado para obras. O repasse que a viabiliza é recebido em conta exclusiva de investimento. A licitação que o gestor local assina com a construtora tem por objeto único e exclusivo... a construção da unidade.

O convênio celebrado para a construção do hospital, como qualquer outro, traz enorme detalhamento dos objetos do gasto, conferindo rigidez à execução. Supervaloriza classificações orçamentárias que especificam meios (categorias econômicas, elementos de despesa, gastos finalísticos x apoio), estabelecendo uma ruptura entre custeio e investimento e afastando os termos da execução da efetiva finalidade da despesa – o funcionamento das infraestruturas e das redes que elas integram.

Análises de prestação de contas e órgãos de controle tendem a verificar conformidade em relação a essas classificações, bem como a itens de plano de trabalho e a custos unitários na licitação. Gestores locais têm que observar com quais itens podem gastar o recurso, de acordo com sua classificação orçamentária. São memórias de cálculo, rateio de despesa, aferição de contrapartida, identificação de fonte orçamentária, regularidade fiscal, remuneração de equipes, outras despesas correntes, obra, equipamentos e autorização para ajustar planos de trabalho. Tudo isso em fila indiana, para gáudio e simetria do cronograma. Vai fazer duas coisas ao mesmo tempo ou mexer com o processo estabelecido em nome da eficácia, que você verá o resultado: uma multidão de ‘especialistas’ testemunhando contra você, lá na comissão disciplinar.

Se superarmos tudo isso, data vênia, com a devida competência, temos, enfim, a prestação do serviço público. Toda a parafernália burocrática começa a fazer sentido, não é seu Barbosa?

Dois mundos. Diversos esforços. Fragmentos de objetos. Somados, no fim da linha, têm que dar um só serviço público. Retomando o seminário de obras, o sábio de gênio bom se voltou novamente para os especialistas:

- Vocês estão dispostos a abrir mão de planos de trabalho excessivamente detalhados, fixando os controles nas condições que asseguram o efetivo funcionamento das infraestruturas?

É, seu Barbosa, seu atendimento foi feito no SAMU e na UPA, e não em um objeto todo retalhado, 80% custeio, 20% investimento. “Disso eles sabem muito bem, mas fazem assim mesmo”.

 

Bruno Moretti é economista, mestre em economia e doutor em sociologia.

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